Como nem todas as pessoas que leem conseguem fazer uma boa análise de texto, vamos aos avisos: NÃO SOU FAVORÁVEL AO ABORTO; também não se trata, nesta coluna, de defender capitalismo ou socialismo, embora neste caso teria muito a dizer sobre o impulso de morte, como diz Byung-chul Han, que se esconde por trás do capitalismo de rapina da atual conjuntura, basta dar um “passeio” pela Baixada Fluminense, RJ, onde moro, para constatar; não se trata de buscar identificar contradições políticas em figuras conhecidas do cenário brasileiro, embora elas existam por todo lado. Trata-se de buscar identificar o que pode ser chamado de “defesa da vida” por quem diz seguir o CAMINHO de Jesus Cristo. Evidentemente sem pontificar nada. Apenas refletir.
Um filósofo do século dezoito muito nos ajudou a fundamentar o que hoje se chama de “Direitos Humanos”. É o alemão Emanuel Kant. Simplificando bastante sua capacidade argumentativa, ele afirmou que a vida humana vale por si mesma, não tem valor de troca, não pode ser instrumentalizada. Lembre-se que no século XVIII ainda havia escravidão no Brasil. Brinco como meus alunos de Ética Cristã que o fundador dos Direitos Humanos, na verdade, foi Jesus de Nazaré. Brinco porque, naturalmente, este é um conceito moderno, consagrado apenas depois da segunda grande guerra pela ONU.
Assim sendo, não é possível “descobrir um santo para cobrir outro”, e tudo em nome de Jesus. Há uma inumanidade, palavra pouco usada em português, que configura o atual estado da sociedade. Inumana é a pessoa que relativiza situações humanas de tal sorte que hierarquiza quem é mais ou menos humano. É mais forte que desumano, pois posso ser desumano e me arrepender. Inumano, por exemplo, é uma pessoa que, de fato, acredita que o negro é inferior ao branco.
Sim, há dúvida se um feto deva ser considerado “vida” de forma completa. Aqui o uso da expressão “bebê” para o feto não é adequada, pois falta muito para ele interagir com aquilo que vai tipificar sua humanidade. Mas, havendo dúvida, a sociedade deveria, do ponto de vista ético, e não religioso, ter cuidado para não abrir brechas de tal forma que se justifique tirar a vida de alguém não levando em consideração este princípio ético fundamental: a vida humana vale por si mesma. Creio que até aqui possa existir um bom acordo entre todas as instituições que se colocam como porta vozes do cristianismo.
Contudo, não existe humanidade fora de um contexto social, político, econômico e cultural. Por isso, um clone humano é impossível. Não do ponto de vista genético, mas do ponto de vida cultural. Não é possível clonar outro Einstein, pois não se podem reproduzir todas as condições nas quais a mente deste grande cientista se desenvolveu.
Ora, ora, então é preciso ter muito cuidado para não se deixar instrumentalizar por posições terrivelmente inumanas. Como comparar um homicida comum com uma menina que aborta? Como qualificar uma pena para a vítima, mesmo sendo ela adulta (dezoito anos mais um dia), maior do que aquele que a vitimiza? Neste caso um estuprador.
Por que só as mulheres são criminalizadas? E os homens que forçam mulheres abortarem, inclusive financiando? Como não levar em consideração as condições reais, sim reais, da vida em um contexto patriarcal, machista e misógino? Que tipo de pessoas formula uma lei com a coragem de afirmar que, no caso das meninas, elas só seriam conduzidas a penas “socioeducativas”? Como assim? Elas fariam um bom curso de como não serem estupradas? Em que país tais “legisladores” vivem?
Este PL 1904 é uma aberração. Quem diz isso não é este modesto colunista, mas juristas, cientistas sociais, cientistas da área médica e sanitária, ou com mais profundidade, uma menina de dez anos, estuprada por seu padrasto, e que descobre seu corpo mudando aos poucos, pois não sabe como se desenvolve uma criança no ventre feminino, e vê, sem nada entender, uma multidão de gente bem vestida gritando na porta de um hospital: “crucifica, crucifica”. Não se defende a vida banalizando outras vidas. E diria um mestre bem conhecido: “Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra”.
Portanto, de duas uma: ou a presidência da CNBB (presidente, vices, e secretário) foi induzida ao erro, ou é de extrema direita. Todos os “extremos” devem ser evitados, inclusive de esquerda também, antes que alguém grite. É a extrema direita que tem usado de mentiras ou meias verdades, do ódio, da intolerância, para justificar aquilo que ela acredita ser o melhor para a humanidade. Foi dito à luz do dia que este PL é uma forma de pressionar o governo. Pressionar em que direção? Para garantir emendas milionárias?
Sim, a defesa da vida é um princípio ético fundamental do legado de Jesus de Nazaré para aqueles que o seguem, a lógica da inclusão também, e o amor acima da “lei” não tem dúvida (Mc 3,1-6). Nesta narrativa do milagre do homem da mão seca, estes três princípios aparecem nitidamente. O impuro foi conduzido ao lugar mais importante. E no final qual foi à conclusão dos inimigos de Jesus: “começaram a tramar contra a sua vida”.
Usando a reflexão de Adela Cortina, filósofa espanhola cristã católica, o legado de Jesus é uma “ética de máximo” que deve dialogar com o conjunto da sociedade pra garantir uma “ética do mínimo”. O máximo é um ideal de felicidade, e o mínimo é uma exigência racional de que todas as pessoas tenham sua dignidade fundamental garantida.
Não devemos buscar argumentar através do medo e de ameaças. Mas sabemos que o medo é um fator fundamental para garantir o sucesso do poder dominador. Por isso, como diz Mia Couto, “há quem tenha medo que o medo acabe”.